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27.11.07

خرا 

Crítica à peça (quarteto de cordas nº 4) de Jörg Widmann (n. 1973) executada pelo quarteto Vogler no programa "Quartetos de Berlim II", Fundação Calouste Gulbenkian, dia 26 de Novembro pelas 19h.

Uma obra pós moderna e então:
خراخراخراخراخراخرا

fui fui fuih shhhhhsss crr crrr crrrrrrrr
ssssss zzzzzzz zzzzzz sssssssss zzzzzzzz brrrrruac
ьмодер ьмодер ьмодер ьмо дерьмо дер

빌어먹을 빌어먹을 빌어먹을

m tenschijtenschij e ßescheißeschei r demerdemer d itshitsh a

Enfim, acho que para crítica basta... ah! esqueci-me:

dó maior e ziiiim ziiiiim ziiiiim ziiiiiim.

P.S. A blogosfera é mesmo um espaço livre. Alguma vez poderia eu publicar uma crítica destas num jornal? E acho que não há melhor texto para exprimir a minha sensação ao escutar aquilo. Simplesmente não há outra forma de fazer a crítica.

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Seabra Chega 

Augusto Manuel Seabra, o crítico e pensador chega à blogosfera.
A sua coragem e luta contra tudo o que é injusto e a sua posição vertical na vida (a sua maior virtude), que o levaram a situações pessoais desconfortáveis, com saída de publicações, onde a sua consciência o impedia de ficar, e a processos judiciais por apenas usar as palavras apropriadas às circunstâncias, levaram-me a mudar também de posição relativamente ao crítico que anteriormente criticava fortemente os seus próprios colegas de jornal e às vezes, de forma algo infundada se dava ares de grande arrogância e abrangência em todas as lides culturais, para mim o seu maior defeito.

Tenho hoje o maior respeito pela figura pública e ideias de Augusto Seabra. Discordo muitas vezes do que diz e escreve, mas entendo que é um nome muito importante no nosso panorama crítico e na nossa cultura. Não será possível fazer uma história da cultura em Portugal neste triste período sem passar pelo Augusto Seabra e pelas suas reflexões, meditadas, muitas vezes muito lúcidas e enraizadas numa cultura profunda.
Finalmente o Augusto Seabra é um intelectual no verdadeiro sentido da palavra, não despreza a música, a mais abstracta, sensível e etérea das artes, a sua rainha.

É com grande prazer que faço o link que sempre imaginei que nunca apareceria. Visitem e leiam o Seabra. Para concordar e discordar, e para debater.

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Indignação 

Estendo o direito à indignação não só aos políticos, decisões e suas manobras e jogadas, como também à chamada "intelligentsia", acho que tenho direito, afinal são eles as "luminárias", os "lustres" da nossa coltura. Sem eles nada se move, nada se cria, nada se transforma, que seríamos de nós, pobres desvalidos sem estes grandes panques da vivência lusitana. Pai nosso ilumina-os e deixa que a sua luz irradie sobre nós, ou talvez não...

No recital de Prégardien e Gees, S. Carlos, 24 de Novembro de 2007, estava muito pouco público. Eu nunca vejo nestes recitais as chamadas figuras da "intelligentsia" do russso, ou melhor "intelligentia" do latim. Não vejo os Sousa Tavares, as Claras Ferreira Qualquer Coisa, não vejo sequer os Pachecos Pereiras ou via os Prados Coelhos, nunca vi o Mário Soares num concerto, nem a sua dilecta descendência, mais ou menos ribombante, nunca vi o Pulido Valente num concerto, já o António Barreto e o prof. Marcelo são melómanos e estimo-os por isso. Um Graça Moura ainda o vi uma ou duas vezes, mas é figura também arredada. Nunca vi as figuras dos chamados "opinion makers", Carlos Magno (em Lisboa ou no Porto), ou de políticos como Marques Mendes ou António Vitorino e figuras quejandas (talvez porque eu esteja a precisar de óculos e estas figuras são, além de transparente e baças, muito pequeninas), nem aqui ou em londres, Paris, Bayreuth, Munique, Salzburg ou noutro lado qualquer, onde encontro muitos portugueses com frequência. De José Sousa e da sua entourage nem falo, o Meneses vejo às vezes... mas no futebol; nem vale a pena citá-los, vêm de meios absolutamente alheios à cultura musical. E já nem sequer escrevo sobre esta suposta "intelligentia" que nunca aparece, para quem o Goehte, o Heine ou o Petrarca escritos têm imenso valor (para alguns) e depois de musicados por Schubert passam à categoria de outra realidade à qual não têm acesso.
Portugal é um país onde a cultura musical é miserável e onde os tais opinion makers não dedicam o menor interesse à música. É natural assim que um recital de Schubert com dois dos mais excelsos intérpretes fique às moscas enquanto numa recôndita aldeia da Aústria (1800 habitantes) encha sistematicamente uma sala (Angelika Kauffmann Hall) com mais de seiscentos lugares, que se situa a mais de três horas de carro de Viena e de Salzburg, para a Schubertiade.

Façam um esforço, vá, é que primeiro "estranha-se e depois entranha-se".

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Deus chamou-os por os amar demais 

Fui assistir a um recital notável de dois dos melhores intérpretes de lied a nível planetário. Falo do recital de Michael Gees em piano e do cantor Christoph Prégardien, tenor alemão que nos deu uma Schöne Müllerin (ou uma Bela Moleira) de Franz Schubert (1797-1828) sobre poemas de Wilhelm Müller (1794-1827), um jovem poeta que, tal como Schubert, não teve tempo de envelhecer e que lhe daria os poemas dos dois ciclos que bastariam por si só para fazer de Schubert um dos maiores génios da humanidade: esta Moleira e a Winterreise (ou Viagem de Inverno). Müller, ele também moleiro (müller), como ele afirmava, escreve este ciclo na primeira pessoa. Müller foi um poeta menosprezado pela cultura exterior à Alemanha, talvez por ser aparentemente simples, talvez por procurar a alma do povo na sua poesia. A sua poesia está envolvida da alma alemã. Quanto mais viajo pela Alemanha e conheço os seus habitantes, sobretudo no Inverno, e vou fazendo amigos, mais percebo o génio de Müller, mas estas são contas de outro rosário.

A obra dada neste recital do S. Carlos no passado sábado, pelas 21h, foi escrita em 1823, este ciclo é menos elaborado (formalmente) do que as subsequentes viagens de Schubert por Müller e Heine, sem esquecer outro jovem, Relstab, que Prégardien cantou como extra: Liebesbotschaft (ou Mensagem de Amor), um canto de esperança no retorno de uma amada que, sabe-se, nunca regressará, sobre outro regato, o regato de Relstab que afinal conflui no de Müller através das torrentes de notas de Schubert que correm para o abismo a uma velocidade vertiginosa, a velocidade da criação de Schubert que espantou o próprio Beethoven nos seus últimos dias, "como tem ele tempo?", notas que correm, aparentemente calmas, nestes ribeiros e na progressão de uma doença que corrói o compositor desde o início de 1823, Sífilis, e da qual Schubert sabe com uma certeza absoluta que irá morrer, provavelmente após uma agonia penosa. Esta mensagem de amor é também o último fluxo aquático do compositor e a melodia evoca a bela moleira. Se Prégardien escolheu a Bela Moleira e pouco haveria mais a dizer, esta escolha de extra seria a única possível e lógica para fechar o ciclo. Prégardien já nos deu uma superlativa interpretação da Bela Moleira em 1992 (CD deutsche harmonia mundi- 05472 77273 2) com Andreas Steier, num piano com acção vienense cópia feita em 1981 de um Johann Fritz Wien de 1818. Prepara-se para gravar de novo o ciclo, agora com a maturidade que a só a idade pode trazer. Sem perder a beleza ímpar de uma voz puríssima, sem um toque ínfimo de vibrato que seja, cantando sempre no limite, dando tudo, desde a música, aos agudos e à emoção que lhe turva a voz, de quando em quando, ao mudar de registo. Prégardien e Gees mergulharam profundamente na alma dos autores e isso transpareceu acima de tudo.

Este ciclo divide-se claramente em duas partes e diversas subpartes, é um ciclo na verdadeira acepção da palavra e tem uma dramaturgia própria. Começa por um prólogo que termina com "Halt!", que nos traz o típico Wandern romântico alemão, o viandante é um jovem moleiro, ainda despreocupado, à procura de algo que não se pode definir com rigor. O ciclo segue no encontro com a moleira, na descoberta do regato, do moinho e do amor, que termina em Mein!, um delírio possessivo e entusiástico que prenuncia a demência que levará à morte do jovem moleiro. Os sentimentos culminam em Pause, momento central, paragem para meditação, momento culminante de um amor que se verá não ser correspondido. A disrupção surge com o caçador, o caçador que sem dó nem piedade aniquila e destrói, o caçador que irá roubar ao moleiro o amor imaginário da jovem moleira, é a partir daqui que surgem os pontos mais notáveis deste ciclo, com a Die Liebe Farbe (A cor amada ou a cor verde e como este título é ambíguo), "o meu tesouro do verde tão profundamente gosta", o verde da fita que o moleiro lhe ofereceu (mas também o verde do caçador, como se perceberá na segunda, e final, estrofe) que termina com um contraditório e surpreendente "o meu tesouro da caça tão profundamente gosta", é nesta fase que o tom menor se instala sempre à volta do desolado si menor (o mesmo si menor de Bach), esta fase termina com Die Böse Farbe, a cor maldita. O Epílogo marca o fim de um amor imaginado e nunca declarado, marca a morte, a desilusão, mas também o apaziguamento que o ribeiro e as suas águas dão amortalhando o corpo do moleiro, embalaram este amor e embalam o seu fim. O epílogo é apenas a morte, uma morte lógica, romântica, sempre com o ribeiro por pano de fundo, num fluxo interminável que passa por toda a obra. O penúltimo lied Der Müller und der Bach é talvez dos mais simples e dos mais belos escritos por Schubert, a melodia é infinitamente triste no seu sol menor, em que o regato abraça o moleiro, Prégardien neste ponto foi sublime, a beleza cristalina da sua voz e a sua inteligência recriou o poeta e o músico de uma forma comovente neste sol de Outono, e no sol menor deste lied, de 1823, ano em que Schubert criou esta obra, um sol menor que brilhou na voz do cantor. Brilhou ainda no "azul cristalino" da canção estrófica final, uma marcha fúnebre repetitiva e desolada, em que os agudos de Prégardien foram pungentes, "hinweg", mas também brilhou a tristeza e a melancolia, a poesia e a alma de dois jovens mortos quando Deus os chamou por os amar demais, o ciclo termina com o "céu é vasto"...

Dois músicos, dois poetas, dois intérpretes, fusão total. Um recital sem mais palavras, simplesmente comovente.



P.S. 1 - Notas finais: no programa ficamos a saber quem são os electricistas, os aderecistas, os vassouristas, que existe bengaleiro, que a carreira 28 passa pelo S. Carlos, sabemos quem são os administrativos e até os mais insignificantes detalhes do teatro, no entanto não figura em qualquer parte, que eu tenha conseguido descobrir, o nome do tradutor do alemão para português. Ainda procurei no capítulo: "sector dos tradutores e intérpretes" no final, mas não havia, havia apenas costureiras e afins, no entretanto fiquei a saber que o José Diogo é colaborador (com asterisco) do sector dos electricistas (este meu amigo julgava-o noutro sítio) e que no sector administrativo lá está a Patrícia Pires como colaboradora do serviço de limpeza (com asterisco)...

P.S. 2 - No programa vem a mui útil informação de que "não é permitida a entrada" de espectadores depois de iniciado o espectáculo. Bela incongruência, entraram constantemente espectadores até ao lied número sete (de um total de vinte) nos camarotes, fazendo um barulho inenarrável, também constante e brutal na violação da atmosfera altamente concentrada dos lieder de Schubert, o fluxo de entradas foi ininterrupto com abrir de portas, cliques dos ferrolhos das fechaduras, arrastar de cadeiras e murmúrios dos recém chegados mal educados que abafavam os múrmúrios ou sussuros (rauschen) do regato. Percebe-se por estas e por outras que o Teatro de S. Carlos anda sem rei nem roque, à deriva, sem uma cabeça que esteja presente e decida. Nunca assisti a tamanha pouca vergonha em qualquer teatro ou sala europeia. O director artístico em part time lá estava no início, não sei se ficou a assistir ou se tinha de apanhar o avião para Colónia...

P.S. 3 - A poesia do lied é extremamente importante, nem toda a gente domina o alemão ou tem vinte interpretações diferentes da "Bela Moleira" e ouviu o ciclo quinhentas vezes. Nem toda a gente leu a tradução antes e se não domina o alemão, mesmo que tenha lido, não consegue encontrar o pé no meio de um ciclo que durou uma hora e cinco minutos. É por isso lamentável que nem sistema de legendagem tenha sido usado nem, na sua falta, as luzes da sala estivessem semi acesas de forma a permitir uma leitura da poesia no programa. Uma falta de cuidado e grande desatenção pelo público naquela que foi, até agora, a pérola (a única que vislumbrei este ano) de uma programação nitidamente feita com os pés. Uma falta de atenção que resulta em mais um desrespeito pelo público.

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24.11.07

Miguel Sousa Tavares e Pulido Valente 

Já escrevi aqui sobre Pulido Valente, quando num dos seus excessos de irritação chamou de "medíocre" a Aquilino Ribeiro, como escritor.
Escrevi que, bem comparadas as duas escritas, medíocre é o Pulido.
Hoje leio no "O Público" uma brilhante análise crítica de Pulido Valente a Sousa Tavares. Devo dizer que sem ser polido foi valente. Toda a superficialidade e banalidade de Tavares vem demonstrada preto no branco.

Uma crítica claríssima desmontando os clichés, apreciando e pesando os disparates de uma mente brilhante que dispara sempres antes de perguntar e de reflectir.
Não existe polémica, nem pode haver, Pulido Valente escreve com tanto rigor e autoridade, e a analise sobre o período da primeira república é um exemplo perfeito do que políticos, jornalistas, intelectualóides, pseudo intelectuais de esquerda (que saudades desta expressão eu tinha) e "opinion makers" incultos e atrevidos deveriam saber antes de arrotarem as habituais postas de pescada sobre a primeira república (e tu JD lê para aprenderes antes de andares a discutir comigo cada vez que tomamos um café)...

Segue o texto na íntegra, porque não consigo fazer link para os artigos do Público. Como a página se encontra livre e disponível mesmo para não assinantes reproduzo-a aqui com a devida vénia.


Crítica escrita por Vasco Pulido Valente

Rio das Flores Vale pouco ou nada como romance histórico, é pobre e vulgar como romance de família


24.11.2007

Pedimos a Vasco Pulido Valente que lesse Rio das Flores, o último livro de Miguel Sousa Tavares. O romance conta a história de uma família de latifundiários alentejanos na primeira metade do século XX. O historiador, especialista da República, não gostou e diz que o escritor não ilumina a época nem a percebe

Numa entrevista ao Expresso, Miguel Sousa Tavares contou um caso, inteiramente imaginário, da minha suposta desonestidade (teria criticado o Equador, sem o ler) e acrescentou alguns comentários desagradáveis. Como é natural, desmenti. Isto bastou para que ele anunciasse por SMS à minha mulher e, a seguir, no Diário de Notícias que "ia dar cabo de mim". Parece que, segundo o critério dele, não "deu", por esta vez, "cabo de mim". Ficou pelo insulto e pela injúria; e pela ameaça implícita de que, se quisesse, revelaria episódios da minha vida pessoal (cinco ou seis) para liquidar a minha figura pública. Nestas digressões Miguel Sousa Tavares não falou uma única vez de um livro meu ou do meu jornalismo. Excepto sobre o meu "carácter" privado, não abriu a boca. Em cinquenta anos, não me lembro de encontrar um ódio tão inexplicável. Fiquei espantadíssimo e até, num encontro de acaso, lhe tentei falar, para o ouvir e, como lhe disse, para lhe poupar no interesse dele uns tantos disparates no Rio das Flores. Não quis.
Escrevo esta crítica sem prazer. Nada pior do que ler um livro mau, excepto escrever sobre um livro mau. Mas, como se compreende, não podia deixar que a brutalidade de Miguel Sousa Tavares chegasse para me calar.

Preâmbulo

Uma ficção histórica (um romance), como a história, interpreta o passado. Ao contrário da história, pode inventar um passado, onde as fontes são omissas ou parciais. Pode deformar coerentemente o passado (dentro de limites), atribuindo, por exemplo, uma mentalidade moderna a personagens da Antiguidade ou da Idade Média. O que não pode é desconhecer e falsificar o passado ou dar dele versões falsas, simplificadoras ou propagandísticas. Convém, por isso, no caso do Rio das Flores, partir deste ponto elementar. Tanto mais que Sousa Tavares anuncia na badana que o livro assenta num "minucioso e exaustivo trabalho de pesquisa histórica".

Opiniões

Rio das Flores é a história de uma família de latifundiários do Alentejo entre 1915 e o fim da II Guerra: do pai (Manuel Custódio, que morre ao princípio do livro), da mãe (Maria da Glória), dos dois filhos (Diogo, o herói do romance, e Pedro, o seu contraponto), da mulher de Diogo (Amparo), da amante de Pedro e da segunda mulher de Diogo. Pelo livro perpassam outras criaturas, sempre de uma convencionalidade absoluta, que pouco vão além do nome, ou da etiqueta, e se esquecem imediatamente. Mesmo as personagens principais são pouco densas, sem complexidade ou interesse. Através da família dos Ribera Flores, o Rio das Flores pretende ser uma meditação política sobre a primeira metade do século XX. É bom por isso saber, um a um, o que têm dentro da cabeça e, sobretudo, o que tem dentro da cabeça Miguel Sousa Tavares: uma distinção muitas vezes difícil de estabelecer.
a. Opiniões de Manuel Custódio sobre a República - Claro que não tratarei aqui de opiniões, que servem para "caracterizar" Manuel Custódio como "personagem": uma regra que apliquei a Diogo e a Pedro. Só me interessam aquelas que revelam os conhecimentos dele ou, se preferirem, o grau de consciência da situação em que vive.
Manuel Custódio acha, por exemplo, que "as despesas da corte no tempo de Monarquia" eram ridículas comparadas com "o desperdício de dinheiros públicos do governo do dr. António José de Almeida - "o rei dos demagogos, o maior vendedor de feira que este país já conheceu"". Sendo que António José de Almeida foi presidente do Conselho entre Março de 1916 e Abril de 1917, quando Portugal entrou em guerra e se organizou o Corpo Expedicionário para a França, a comparação não faz sentido, nem (como no caso) numa querela de café.
Manuel Custódio acha que a República queria proibir "os padres de andar vestidos de padres". A República proibiu o uso de vestes talares na rua, isto é, de vestes que chegassem ao calcanhar (do latim: talus, calcanhar): numa palavra, a batina. Não proibiu o fato preto e o cabeção (ou volta), e a coroa, que identificavam perfeitamente os padres.
Manuel Custódio acha que vai "ganhar quem eu disser ou quem disser aquele pateta do Joaquim Gomes, o cabo eleitoral dos republicanos em Estremoz. É só esperar para ver qual de nós dois está disposto a gastar mais dinheiro com a eleição e depois contam-se os votos - se não houver chapelada deles". Isto mostra, numa cápsula, que Manuel Custódio não compreendia os mecanismos eleitorais da República, na prática um regime de partido único, o Partido Democrático. Nesse ano, 1921, ganhou a maioria o Partido Liberal por decisão de António José de Almeida (na altura Presidente da República) e com o acordo do Partido Democrático: o que, de resto, levou rapidamente ao assassinato do presidente do Conselho, o "liberal", António Granjo. Daí para frente, como desde 1911, o Partido Democrático ficou sempre, como antes, com a maioria no Parlamento e no Senado e Estremoz nunca elegeu um deputado monárquico.
Suponho que isto basta para indicar a natureza e a perspicácia das discussões políticas nos jantares de Manuel Custódio.
b. Opiniões de Diogo sobre a República - Como notei atrás, é difícil separar Diogo de Miguel Sousa Tavares. Seja como for, trato aqui só de opiniões que Miguel Sousa Tavares resolveu atribuir a Diogo e que não servem directamente para o "definir".
Escreve Sousa Tavares: "Diogo (...) não gostava de ser tratado por morgado, esse título que se referia ao iníquo sistema sucessório em que filho varão mais velho herdava tudo, como forma de defesa da propriedade familiar, evitando a sua divisão entre vários herdeiros. A República pusera fim legal aos morgadios e ele, embora tivesse saído pessoalmente a perder, estava de acordo." A Monarquia "pusera fim legal" ao último morgadio em 1863, com excepção da Casa Real. Nem Diogo, nem o pai, nem o avô, nem o bisavô, nem o tetravô repararam na coisa.
Diogo acha que a República instituiu "o sufrágio universal". A República notoriamente não instituiu o sufrágio universal. A lei eleitoral de 1911 deixava votar os maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever ou que fossem chefes de família há mais de um ano. Infelizmente, na "eleição" de 1911 não se votou, por pressão do Partido Republicano, em quase metade dos círculos. Pior ainda, nos círculos em que se votou, bandos de terroristas "fiscalizaram" o acto. Na eleição seguinte, em 1913, o Partido Democrático restringiu o voto a maiores de 21 anos, do sexo masculino e letrados: um corpo eleitoral mais pequeno do que o da Monarquia. A República não podia, como é óbvio, deixar votar o povo analfabeto do campo, que obedeceria ou se "venderia" aos "caciques" monárquicos. Até 1926 (com a excepção do "sidonismo"), o regime de 1913 praticamente não mudou.
Diogo acha que a República decretou "o divórcio para quem não é católico". A República, de facto, decretou o divórcio para quem era ou não era católico, para quem se casara pelo registo civil ou pela Igreja. Mas são subtilezas que excedem Diogo.
Diogo acha (ou parece achar) que a República foi uma democracia. A um amigo pergunta: "Os portugueses livraram-se de uma ditadura (a Monarquia) e, menos de vinte anos depois, já querem outra (a ditadura militar)." E, durante o pronunciamento republicano de 1937, pensa que em breve se irá restabelecer a "legalidade democrática". Verdade que Diogo tem ideias muito estranhas sobre a Monarquia e era muito novo em 1910. Mas não conseguir ver, aos 27 anos, o que toda a gente via, ou seja, que a República não passara da ditadura do Partido Democrático (de que ele mesmo, de resto, se gabava) e que não existira legalidade alguma, excede a ignorância permissível.
Diogo acha, enfim, que é (ou foi) "um monárquico constitucionalista". Esperemos que tenha querido dizer "constitucional".
É com uma personagem desta lucidez que temos de acompanhar a história política de Portugal, de Espanha, do resto da Europa e do Brasil durante 608 páginas. É principalmente através dele que o leitor é convidado a "ver" a ditadura, a liberdade e o destino do mundo.
c. Opiniões de Miguel Sousa Tavares sobre a Monarquia e a República - Quando aqui me refiro a Miguel Sousa Tavares deve ser claro que me refiro ao narrador. Incumbia, em princípio, ao narrador alguma exactidão e alguma subtileza interpretativa. Vamos por partes.
Começa por que Miguel Sousa Tavares, como Diogo, tem uma ideia insólita da Monarquia. Sousa Tavares acha que uma "aristocracia caduca e inculta" dominava a Monarquia: os "marqueses de berço" e os "condes de ocasião". Desde 1871, ou seja, nos cinquenta anos que precederam a República, estiveram no governo, entre dezenas de ministros, 2 marqueses, 3 condes, 3 viscondes. Excepto Sabugosa (um ano no Ministério da Marinha), nenhum "de berço", todos "de ocasião". Havia, claro, muita gente de "boas famílias de província" ou da classe média de Lisboa e do Porto, em geral com pouco dinheiro, que mandara estudar os filhos. E uma apreciável quantidade de self-made men. De uma "aristocracia caduca e inculta" a governar o país nem os próprios republicanos se queixavam.
Sousa Tavares acha que existiu um "poder autocrático e distante" nos "últimos tempos da Monarquia". Poder de quem? Dos partidos? Do rei? E quando? Durante a crise de 1891-1893? Durante os meses da "ditadura" administrativa de João Franco? A "descrição" é vácua: e falsa.
Sousa Tavares acha que "os grandes capitalistas (...) tinham mantido cativa a Monarquia, trocando créditos à Casa Real por concessões de monopólios e oportunidades de negócio nas colónias de África". Os governos vigiavam os dinheiros do rei, vintém a vintém. João Franco publicou (com injusto escândalo) as contas todas. Nem o mais remoto vestígio de evidência permite a Sousa Tavares dizer o que disse. E nem o Partido Republicano, indiferente à calúnia, se atreveu a ir tão longe.
De resto, as noções de Sousa Tavares sobre a República são vagas. Acha que foi um regime "dissoluto, deliquescente" e "que parecia sem rumo" (o que não quer dizer absolutamente nada). Acha que "abandonou à sua sorte as colónias de África por absoluta incapacidade de gestão" (um erro óbvio) e acha que se "arruinou na aventura militar da Flandres" para conservar o Império Português (tese contestada e hoje abandonada). Acha que a República fez do "clero regular, e em especial dos Jesuítas, o seu principal inimigo" (não existiam em Portugal mais de uma centena ou duas de Jesuítas no 5 de Outubro) e que "insinuou tréguas" ao clero regular, "em troca de apoio". Não lhe ocorreu sequer que a Lei de Separação, que tenta "explicar" (com vários erros pelo meio), se dirigia na essência ao clero regular. Nada disto é para levar a sério e não contribuiu remotamente para que alguém perceba a República.
Mas Sousa Tavares não pára aqui. Acha, por exemplo, que a República confiscou os bens dos "aristocratas exilados" (não confiscou) e que o Papa "se apressou a publicar uma encíclica contra ela" (não publicou uma encíclica, publicou uma bula, que repetia a doutrina pouco antes estabelecida para França) e que deu "instruções secretas aos bispos portugueses com vista a uma resistência clandestina como no tempo dos primeiros cristãos de Roma" (!!!). Vale a pena comentar?
d. Opiniões de Pedro - Pedro, graças a Deus, quase não fala. Expele tiradas de propaganda, com frequência completamente anacrónicas (mas não se pode pedir muito). É o contraponto da direita de que Diogo precisa. Não adianta, nem atrasa.

Resumos
de "História"

Como o Rio das Flores vai de 1915 ao fim da II Guerra, Sousa Tavares é obrigado a entremear a vida dos Ribera Flores, com resumos do que sucedeu em Portugal e no mundo. Estes resumos seriam sempre uma simplificação. Com Sousa Tavares, são, além disso, de um primarismo, de uma banalidade e de uma ignorância, que não permitem o mais vago entendimento do que se passou. Tanto mais que o narrador resvala constantemente para a retórica da indignação pré-"25 de Abril" e de quando em quando faz digressões de uma extraordinária irrelevância, para exibir a sua virtude ou a sua cultura, ou simplesmente porque lhe pareceram "engraçadas". Não se procure aqui a história ou "atmosfera" dos anos 20, 30 e 40. Segue, para guia do leitor, a lista dos resumos:
A Ditadura Militar, Salazar e o Estado Novo - Com erro atrás de erro, não há lugar-comum que Sousa Tavares nos poupe sobre o "28 de Maio", a personalidade de Salazar e a perversidade do Estado Novo. Infelizmente, como não compreendeu a República, não consegue compreender Salazar, nem os mecanismos por que tomou e consolidou o poder. O narrador repete a evidência de que o exército e a Igreja apoiaram Salazar: não esclarece nem como, nem porquê. E não lhe ocorre que a liquidação política do liberalismo e do radicalismo a favor do "viver habitualmente" (cujo significado essencial lhe escapa) implicasse mais do que a polícia e a censura.
O pronunciamento de Fevereiro de 1937 - O narrador não trata dos motivos corporativos do pronunciamento ou da sua natureza política. Resolve contar o episódio, em que Diogo nem sequer participa, porque sim.
Política espanhola até 1936 - Diogo explica incontestavelmente o que o narrador pensa: "Houve eleições (em 1931), ganharam os republicanos e socialistas e há um governo legítimo em funções. Um governo escolhido pelo povo: conhece melhor alternativa para governar os povos?" Em 1932, torna a dizer o mesmo. Talvez seja apropriado observar que em 1931 e 1932 já a Espanha estava em guerra civil larvar.
A Guerra Civil de Espanha - Miguel Sousa Tavares escreve que a Frente Popular ganhou a eleição de 1936 por 150.000 votos, uma margem ridícula. Se tivesse lido Hugh Thomas com atenção (vem na bibliografia), saberia como esse número é enganador e artificial. Não leu ou não se ralou. O título do primeiro grande "clássico" sobre a Guerra de Espanha é O Labirinto Espanhol. Mas Miguel Sousa Tavares não perde tempo com complexidades. Num único parágrafo descreve (mal) as razões políticas da guerra e segue para uma reportagem truncada e tosca da conspiração e do levantamento militar. Por necessidade narrativa (Pedro vai para Sevilha para combater na Legião Estrangeira), conta em mais pormenor o "golpe" de Queipo de Llano em Sevilha e, com um enorme buraco pelo meio, a campanha nacionalista até Madrid, onde Pedro é ferido.
Desta prosa atrapalhada e confusa, sobra uma pérola. Cito: "No lado oposto, pontificava o socialista de esquerda Largo Caballero, um político populista e demagogo (...). "A revolução a que aspiramos - dizia ele, sem medir as palavras - só terá sucesso através da violência."" Isto sobre um homem a quem chamavam desde 1933 o "Lenine de Espanha, um homem que organizara e declarara a greve geral revolucionária de 1934 (a chamada "revolução de Outubro) e que já expressamente ameaçara antes com a guerra civil : "não media as palavras". Isto sobre o chefe de um partido, cujo programa, entre outras coisas, reclamava: a nacionalização da terra, a dissolução e expropriação das ordens regulares, a dissolução do exército e a dissolução da Guarda Civil: "não media as palavras".
A política de não-intervenção - O narrador volta à denúncia (indignada, claro) da política de não-intervenção. Tal qual como se Blum (a Frente Popular Francesa) e a Inglaterra fossem absolutamente livres de intervir e tivessem escolhido não o fazer. Não eram e seria aqui inútil demonstrar por quê. Mas três observações de Miguel Sousa Tavares merecem (pelo absurdo) um comentário.
1.ª Sousa Tavares escreve: "De início, o ditador comunista (Estaline) não parecia muito inclinado a envolver-se no conflito espanhol, mas a enorme pressão exercida pelo Komintern acabou por forçá-lo a mudar de política." Se, em 1936, algum membro do Komintern manifestasse a mais ligeira discordância de Estaline, seria imediatamente morto, se estivesse na URSS, ou expulso do partido, se não estivesse. Miguel Sousa Tavares não sabia isto?
2.ª Sousa Tavares escreve, glosando o tema: "Depois de duas décadas a pregar o "internacionalismo proletário", os comunistas de todas as partes do mundo não conseguiam compreender como é que a "Pátria do Socialismo" poderia assistir de braços cruzados a um conflito onde um povo em armas pela Revolução Socialista enfrentava uma coligação de todas as direitas, apoiada por Hitler e Mussolini." Os comunistas não conseguiam compreender? Não tinham compreendido o terror no Partido da União Soviética, os julgamentos de Moscovo (e ainda em 1936 os de Zinoviev e Kamenev), a mudança na Alemanha e na França da estratégia "classe contra classe" para a estratégia "frente popular"? Não iriam compreender o pacto germano-soviético em 1939? Miguel Sousa Tavares não sabia disto?
3.ª Sousa Tavares escreve: "Graças ao trabalho de sapa do embaixador em Espanha, Teotónio Pereira, e à sua facilidade em chegar junto a Franco, foi possível (...) conter os ímpetos expansionistas do ministro (dos Negócios Estrangeiros e antes do Interior) espanhol (Serrano Suner) e a sua tentação de estender o Reich à Península Ibérica. / Este foi o primeiro objectivo de Salazar na pasta (dos Negócios Estrangeiros) e teve sucesso." Miguel Sousa Tavares engole aqui (anzol, linha e cana) a propaganda salazarista. Franco nunca quis qualquer aliança com Hitler como provam à saciedade as condições proibitivas que lhe pôs no encontro de Hendaye (1940). Hitler também não queria a expansão da Alemanha para sul, como escreveu no Mein Kamppf , nem a "estratégia de ofensiva no sul", como mostrou em 1940 e 1941. Em Hendaye, queria que a Espanha expulsasse a Inglaterra de Gibraltar, sozinha ou com uma pequena ajuda, e sem compensações territoriais, susceptíveis de incomodar a Itália e a França de Vichy, coisa que Franco naturalmente recusou. Nem Salazar, nem Teotónio Pereira contribuíram fosse o que fosse para a neutralidade da Península.
Política externa de Salazar - Sobre a política externa de Salazar é ocioso insistir. A neutralidade de Portugal convinha aos dois lados. As pequenas cedências aqui e ali (volfrâmio, Açores) como a zanga com Armindo Monteiro, embora parte do folclore da velha oposição, não têm qualquer espécie de significado. Um ponto, no entanto: ao contrário do que Sousa Tavares parece pensar (ou leva o leitor a pensar), Salazar deu "total liberdade" a todos os "serviços de espionagem" e não só aos alemães.
Política brasileira - Por causa da progressiva emigração de Diogo para o Brasil, há em Rio das Flores dezenas de páginas sobre política brasileira (e mesmo sobre a economia do café), que não sou competente para avaliar. De resto, se o assunto me interessasse, e duvido que interesse alguém em Portugal, escolhia outro livro. Com este (que li e reli), não aprendi nada.

Cronologia

Miguel Sousa Tavares reconhece, numa "nota final", que tomou algumas liberdades com a cronologia. O que não interessaria muito, se elas não afectassem a substância da intriga. Mas neste caso afectam. Duas vezes.
1.ª Miguel quer "mover" Diogo para o Brasil. Diogo é proprietário de uma firma de import-export, que um judeu alemão, Gabriel Matthaus, representa no Brasil. Em Dezembro de 1935, Gabriel vai ver a família à Alemanha e, segundo Sousa Tavares, fica oficialmente impedido de tornar a sair. Ora, excepto se Gabriel fosse por qualquer razão um "suspeito" político (coisa que o livro não menciona), em 1936 podia ainda deixar a Alemanha, embora sem dinheiro ou praticamente sem dinheiro (o que o prejudicava relativamente pouco porque vivia da empresa do Brasil). Entre 1933 e 1937, emigraram 87.000 judeus alemães dos 437.000 que continuavam no Reich: 25.000 em 1936 (o ano em causa) e 23.000 em 1937. Verdade que em 1937, não em 1936, o Brasil fechou as portas à emigração judaica, mas ficaram Cuba, a Colômbia, a Venezuela e o México, onde era depois possível arranjar um "visto" para outro destino. A situação de Gabriel serve principalmente para "avançar" a intriga do romance (Diogo parte para o Brasil para o substituir) e para uma breve, e como sempre distorcida e primária, referência ao Holocausto. Esta espécie de "habilidade" cronológica não é venial, nem aceitável.
Mas, antes de passar à frente, não resisto a uma transcrição, típica da maneira como Sousa Tavares escreve sobre o mundo: "No mês anterior", declara ele, "Hitler anexara a Renânia ao Reich, fazendo tábua rasa dos Acordos de Versalhes, que haviam estabelecido a região como zona desmilitarizada." Hitler não anexou a Renânia, porque a Renânia era parte do Reich. Hitler militarizou a Renânia, coisa que o Tratado de Versalhes de facto proibia. Quase tudo o que Sousa Tavares diz sobre Hitler e o nazismo é assim: errado, aproximativo ou confuso.
2.ª Lá mais para o fim do livro, Sousa Tavares tem o problema contrário: a intriga exige que Diogo fique no Brasil. Como resolver a coisa? Sousa Tavares inventa que a partir do começo da guerra (Setembro de 1939) não existia maneira de atravessar o Atlântico em segurança. Existiu, pelo menos, durante um ano, até Julho de 1940, e em rigor até Julho de 1941, para navios de passageiros com bandeira neutra, que viajavam para portos de países neutros. Centenas de milhares de pessoas foram nessa altura para a América do Sul e para a América do Norte, sem uma perda, e os barcos voltavam para a Europa meio vazios.
Mas com este truque Sousa Tavares faz com que Diogo não venha para Portugal contra a sua vontade, porque isso é essencial à intriga e à "definição" da personagem. Imagino que um iletrado (a maioria dos leitores) acredite piamente em Sousa Tavares.

O uso das fontes e "peças de jornalismo"

Para além das "meditações" sobre política (sob forma de polémica ou não), Sousa Tavares precisa de "encher" o romance, de o "enchumaçar". Para isso, usa fontes. Na história, como na ficção histórica, as fontes devem servir para suportar uma narrativa ou um argumento, esclarecer um ponto obscuro, excepcionalmente para uma descrição com valor alegórico, metafórico, simbólico, analítico ou dramático. Nunca devem servir para uma simples paráfrase ou como uma espécie de reservatório de elementos decorativos, para dar "cor" a um episódio, à maneira do jornalismo de "revista". Infelizmente, é assim que Sousa Tavares sistematicamente as usa. Há passagens que quem se deu ao trabalho de ler a bibliografia percebe muitas vezes donde foram "tiradas". Segue uma lista:
1.º Uma tourada em Sevilha. Sousa Tavares não estava com atenção quando "estudou" a fonte e confunde a capa (ou capote) com a muleta. Daí em diante é o puro disparate.
2.º História abreviada do Palácio Real de Estremoz.
3.º Descrições de vários automóveis.
4.º Descrição do voo de um Zeppelin sobre Lisboa. 5.º Opiniões do embaixador inglês (em 1929) e do sr. R.A. Gallop sobre os portugueses.
6.º Breve história do restaurante Tavares Rico.
7.º O cinema em Lisboa no princípio dos anos 30.
8.º Descrição dos efeitos da crise de 1929 em Portugal.
9.º Descrição de um Zeppelin.
10.º Descrição e história do hotel Copacabana Palace.
11.º Nova descrição de hotéis e de alguns cafés frequentados por intelectuais no Rio.
12.º Preparativos para a Exposição do Mundo Português e obras da referida Exposição.
13.º Economia do café no Brasil.
14.º Descrição e história da fazenda Águas Claras.
15.º Diatribe contra intelectuais brasileiros que colaboram com Getúlio Vargas.
16.º Algumas notas sobre a família Werneck.
17.º Descrição e história da cidade de Vassouras.
18.º Descrição da querela entre Salazar e Armindo Monteiro.
19.º História da demissão do vice-cônsul de Portugal em Vichy (depois de preso pela Gestapo), recomendada por um terceiro secretário de embaixada, Emílio Patrício.
A maior parte destas digressões não tem qualquer função na narrativa: não passa de um ornamento "colado" à narrativa. E a pequena parte que tem uma função podia ter sido reduzida a uma frase ou a meia dúzia de linhas. Sousa Tavares não diz nada indirectamente: não sugere, não insinua, não omite. Não escreve como quem escreve um romance, escreve como quem escreve um relatório: directamente, com a mesma luz branca e monótona para tudo.
Lendo o Rio das Flores, uma pessoa sente claramente quando entrou a "ficha" (de informação) sobre isto ou sobre aquilo. E o peso das fichas torna o livro pueril como um "trabalho de casa". Mas também o desequilibra. A interminável quantidade de páginas sobre, por exemplo, os Zeppelin, a política brasileira (em que Diogo não participa) ou as belezas de Vassouras são meras curiosidades, que estão ali porque estão, e atenuam ou dissolvem a já fraca intensidade do romance.

Comida

No Rio das Flores há 17 descrições de comida. Dessas 17 só quatro ou cinco (e com muito boa vontade) se justificam.

Sentenças

De quando em quando, Sousa Tavares gosta de dar a sua sentença. Para apreciar a sua profundidade e a perspicácia, aqui vão algumas:
1.º "... O Corpo Expedicionário Português fora dizimado em dois dias de Abril à mais imbecil estratégia militar de todos os tempos - a chamada guerra das trincheiras..." Morreram 9 milhões de pessoas porque ninguém (pelo menos tão inteligente com Sousa Tavares) descobriu que a guerra de trincheiras era imbecil.
2.º "... numa Europa ainda mal refeita dos efeitos catastróficos da imbecil guerra de 14-18..." E pensar a gente que se gastou tanto tempo a tentar perceber uma "imbecilidade".
3.º "... toda a elite nacional de então, continuava a alimentar a lenda do regresso desse patético rei D. Sebastião - o mais imbecil, incompetente e irresponsável governante de toda a história de Portugal." Isto é o que Sousa Tavares compreende de D. Sebastião e do sebastianismo.
4.º "... o poeta (Fernando Pessoa) retirava-se (...) dedicando-se (...) à escrita da mais extraordinária obra literária que Portugal alguma vez tivera." Nada de discussões.
5.º "A lista dos intelectuais que militaram pela causa da esquerda espanhola era absolutamente impressionante - não havia, praticamente, um escritor, um músico, um filósofo prestigiado, um Prémio Nobel, que lá não figurasse..." Palavra de honra?
Estes juízos não são percalços, são sinais particularmente cómicos da imaturidade e presunção que permeiam o livro inteiro.

"Personagens"

Como escrevi acima, anda muita gente pelo Rio das Flores: que sai e entra, com uma identidade qualquer e se esquece imediatamente. Na família Ribera Flores, que ocupa o centro da história, as mulheres, Maria da Glória e Amparo, são meros comparsas, de uma confrangedora convencionalidade. Nada de essencial as distingue uma da outra. Literariamente, não existem.
Diogo, o herói principal, é, por um lado, uma colecção de opiniões: representa a inquietação democrática. E, por outro, uma colecção de decisões arbitrárias e de paixões melodramáticas: representa a inquietação existencial. Mas, como só vê e só percebe a superfície dele próprio, do mundo e das pessoas, nunca chega a interessar ou a comover. Não passa de um artifício.
Pedro, o irmão, representa a tradição do latifundiário alentejano e a reacção política. Serve de contraponto a Diogo. Consegue ser um pouco mais "real" do que Diogo. Mas, sendo do princípio ao fim uma "personagem" esquemática e, por isso mesmo, previsível, não é convincente.

Como escreve
Sousa Tavares

Como escreve Sousa Tavares? Sousa Tavares não tem um "estilo", se entendermos por "estilo" uma forma característica de escrever. Sousa Tavares escreve como um jornalista: fluentemente e anonimamente. Quando quer ir mais longe e "fazer estilo", os resultados não se recomendam. Um exemplo ao acaso: "Parecia que Sevilha inteira flutuava com ele dentro de um carrossel de sensações, de excitação, rumo a um ponto qualquer onde tudo aquilo teria forçosamente de explodir num apocalipse."
O lugar-comum abunda: "as areias de Alcácer-Kibir" são "incandescentes"; a "beleza de Amparo" é "encandeante"; a actividade do Natal "é desenfreada"; a "continuidade das coisas" é "reconfortante"; o filho de Diogo "ensaia os primeiros passos"; as pernas de uma senhora são "bem desenhadas" e os olhos "grandes" e a boca "rasgada"; a mãe ama o filho "até ao absurdo"; o corpo da senhora já referida é "esguio e proporcionado"; as palavras "estrangulam a garganta" da mesma senhora; quando Pedro percebe que ela o vai deixar é "como se uma bomba tivesse acabado de rebentar dentro da cabeça dele"; "quem nunca sofreu por amor nunca aprenderá a amar. Amar é o terror de perder o outro, é o medo do silêncio e do quarto deserto...", etc., etc., etc.
Sempre assim.

Conclusão

Como romance histórico e político da primeira metade do século XX, uma alta ambição, o Rio das Flores vale pouco ou nada. Com a sua superficialidade e a sua ignorância (a bibliografia do livro mostra principalmente o que ele não leu, ou seja, quase tudo), Sousa Tavares repete a versão popular "esquerdista", sem "iluminar" a época e sem a perceber. Como romance de uma família, o Rio das Flores é pobre e vulgar. Há quem se entretenha com esta espécie de produto, mas não se trata com certeza de literatura.
Uma última observação: discuti neste artigo um livro e um autor, não estou disposto a discutir a minha pessoa ou a pessoa de Sousa Tavares.

O título é da responsabilidade
da redacção
Rio das Flores
Miguel Sousa Tavares
Oficina do Livro, 628 págs, ?29
Com erro atrás de erro,
não há lugar-comum
que Sousa Tavares nos
poupe sobre o "28 de
Maio", a personalidade
de Salazar e a
perversidade do
Estado Novo
Resumos do que
sucedeu em Portugal
e no mundo [...] são de
um primarismo, de uma
banalidade e de uma
ignorância, que não
permitem o mais vago
entendimento do que
se passou

Sousa Tavares precisa
de "encher" o romance,
de o "enchumaçar". Para
isso, usa fontes. [...] Há
passagens que quem
se deu ao trabalho de ler
a bibliografia percebe
muitas vezes donde
foram "tiradas"

Não escreve como quem
escreve um romance,
escreve como quem
escreve um relatório:
directamente, com a
mesma luz branca e
monótona para tudo

O lugar-comum abunda:
a actividade do Natal
"é desenfreada"; a
"continuidade das
coisas" é
"reconfortante"; o filho
de Diogo "ensaia os
primeiros passos"; as
pernas de uma senhora
são "bem desenhadas"

Há quem se entretenha
com esta espécie
de produto, mas não
se trata com certeza
de literatura

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23.11.07

O atrevido 

O ministro da justiça, um homem que não se sabe bem o que anda a fazer para ali, disse que o Procurador Geral da República tinha falado por desconhecimento ou atrevimento sobre o estatuto dos magistrados.

É natural que fale assim, o ministro que quer ver os magistrados como subalternos, já fala de Pinto Monteiro como se o PGR estivesse abaixo na hierarquia: "atrevido ou ignorante" são mimos fortes, devem ser os termos remniscentes dos usados nas juventudes partidárias entre a rapaziada.
Creio que faltam ao ministro espelhos, pior, a posição do procurador está acima do ministro e a falta de boa educação e de respeito institucional mostram o real calibre deste homem que ocupa o lugar de ministro da justiça membro de um governo autoritário sem autoridade.

O défice de autoridade intelectual e ética do ministro face ao Procurador é evidente. Como o rabo escondido nas propostas do governo foi descoberto, recorre ao insulto grosseiro para tentar tapar o sol com uma peneira. Antes recorreu ao banho para calar os polícias, será que, se pudesse, também mandaria a polícia dar um banho ao Procurador?

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19.11.07

Papa Bento XVI e o artigo de Miguel Sousa Tavares. 

O Papa repreendeu os bispos portugueses.
Escrevi aqui uma crítica com alguma paixão, talvez desnecessária, sobre um assunto que fere tantas susceptibilidades e envolve o respeito por crenças profundas: o fenómeno mariano de Fátima. Elogiei o Papa, como homem profundamente sábio, prudente e culto, naquilo que aparenta ser a sua reserva relativamente ao fenómeno. Recebi críticas ponderadas, que aceito com humildade, de alguns leitores.
Dissertei sobre o espectáculo da fé, quando a Fé deve ser, no meu entender, um fenómeno profundo e individual partilhado na comunidade onde o crente se insere, a diocese e a paróquia. Não creio que qualquer ida a Fátima substitua a vivência e a prática diária. Era esse o sentido do meu texto. Fátima interessa-me pouco do ponto de vista pessoal, no entanto diz muito a muitos crentes e esses merecem todo o meu respeito, não havendo qualquer necessidade de lhes chamar analfabetos ou ignorantes... Para mim o único interesse da Fátima é o sentido da caminhada, da descoberta da via, da reflexão interior durante a caminhada, do sentido da peregrinação tão importante para o ser humano. Quando vejo o garrafão do piquenique não descortino sentido de peregrinação, quando observo a autoflagelação gratuita não vejo aí qualquer descoberta ou meditação...
Há mais gente que pensa como eu, nesse mesmo sentido recomendo uma leitura a Miguel Sousa Tavares no último Expresso. Sousa Tavares escreve, com alguma superficialidade, depois da reprimenda de Bento XVI aos bispos portugueses, eu escrevi antes. Creio que o autor exagera ao falar de João Paulo II, embora entenda o seu descontentamento, mas estou totalmente de acordo quando fala de Bento XVI.

Segue o Texto de Sousa Tavares porque os links do Expresso são perecíveis:

Bento XVI chamou os bispos portugueses a Roma para lhes dar uma reprimenda exemplar e inesperada: Portugal, segundo o Papa, vai mal de verdadeira fé e de militância católica: muito folclore e pouca substância. Esta foi a resposta que a Igreja Católica portuguesa recebeu ao convite para que o Papa viesse a Fátima para a inauguração da nova (e lindíssima) basílica do Santuário. Menos Fátima e mais Evangelho, respondeu-lhes Bento XVI. Menos multidões nas datas marcadas no Santuário e mais gente nas igrejas e na vida das paróquias.

Sob a chefia de João Paulo II, a Igreja portuguesa viveu anos pacíficos, adormecida à sombra de 'verdades' imutáveis e tranquilas: 95% de baptizados, logo de católicos; um código consistente de direitos e privilégios garantidos pelo Estado e cujo núcleo duro nunca foi posto em causa; e uma crescente reanimação pelo chamado 'culto mariano', que todos os anos arrasta multidões até Fátima, numa demonstração de fanatismo religioso que nada fica a dever às de outras religiões para que costumamos olhar com a sobranceria de quem contempla manifestações de selvagens fanatizados. João Paulo II - provavelmente o pior Papa que a Igreja teve desde Pio XII - era muito dado a essas manifestações de fé colectiva e irreflectida, ampliadas pela televisão e os "media". Verdadeiramente, ele acreditava que, afinal, o reino de Deus era deste mundo e que aqui é que se travava a batalha decisiva: tudo o que lhe cabia fazer, enquanto representante de Cristo na terra, era viajar quanto pudesse, arrastando atrás de si as televisões e as legiões de fiéis.

O Papa Ratzinger é diferente. Ocupou-se da doutrina enquanto Woytila se ocupava da fé. Teólogo, intelectual brilhante, com uma noção da intemporalidade da Igreja que vai muito além dos fenómenos passageiros de histeria de massas, ele sabe que 300.000 peregrinos em Fátima não significam 300.000 cristãos no dia-a-dia da Igreja e das suas próprias vidas. Sabe que há católicos, e a grande maioria, que é capaz de viver 364 dias por ano ao arrepio da moral e dos mandamentos da Igreja e um dia por ano a conquistar a absolvição dos seus 'pecados' numa excursão a Fátima, mais ou menos penosa. E sabe que a fé e a religião são coisas diferentes disso.

Penso que nem mesmo o mais disponível dos católicos é capaz de olhar para o Papa Ratzinger e ver nele o representante de Deus ou o enviado de Cristo a este mundo. Mas, em contrapartida, o seu pontificado é capaz de vir a resultar mais útil para a igreja católica do que os longos anos de papado do seu antecessor. A sua mensagem vai-se tornando progressivamente clara: mais substância e menos aparência.

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16.11.07

Concertos - Sibelius 

No Ciclo Grandes Orquestra, que há algum tempo eu apelidei de "Ciclo Pequenas e Médias Orquestras Mundiais", tivémos uma verdadeira Grande Orquestra, a Filarmónica de Los Angeles.
Foi na terça feira passada no Coliseu de Lisboa com a quarta e sétima sinfonias de Sibelius.
A princípio a inclusão destas sinfonias, verdadeiramente atormentadas, de Sibelius suscitou-me perplexidade. As duas obras não são propriemente fáceis, são obras ambíguas, sem centros de gravidade, sem temas distintos e fáceis de identificar, são peças de uma enorme complexidade e são tão plásticas como as sequências de notas que Sibelius utiliza como material de base transmutando-o até à exaustão.
Não são obras fáceis para o ouvinte, não são obras fáceis para o intérprete e não o foram para o compositor. São obras marcantes, pontos de ruptura.
Na quarta sinfonia é um Sibelius vítima de um cancro na garganta, que sofre intervenções cirúrgicas mal sucedidas, que escreve uma obra pessimista e sombria de carácter aparentemente dual, dois pares de andamentos em sequências lento-rápido, mas a atmosfera psicológica é, recorrentemente, sombria. Não há um vislumbre de luz em toda a obra, Sibelius atormenta-se, a forma é difusa, não há efeitos fáceis, não há efeitos cortantes, tudo é nevoeiro, sombras pressentidas na escuridão, a paz surge aqui e ali, mas é apenas a paz, não é a alegria ou a pujança. Isso não existe na quarta sinfonia.
Na sétima sinfonia é um Sibelius a ficar livre das dívidas mas com gravíssimos problemas de criação artística e de alcolismo, dependência que viria a suplantar a pouco e pouco, mas sem nunca reencontrar o estro grandioso para as grandes formas sinfónicas, acabando por escrever nos anos que medeiam entre esta obra e a sua morte em 1957, apenas peças curtas, música de cena, um poema sinfónico ainda nos anos vinte e algumas músicas para rituais maçónicos, incluindo até uma marcha fúnebre que acompanharia o seu funeral (entre outras obras que se tocaram na ocasião). A sétima sinfonia é produto do génio de Sibelius e dos vapores etílicos a que o compositor recorria para escrever, como a mulher de Sibelius lhe disse repetidas vezes, e que nos acabaram por dar uma obra prima de concisão e de ruptura de forma nesta breve obra em um andamento.
Esa-Pekka Salonen, um maestro finlandês bem dentro do espírito do compositor e da alma nacional, não caiu no erro tipicamente russo (v.g. Mravinsky, 1965) de trasnformar estas obras em épicos sinfónicos. Salonen acentuou o lado fluido, sombrio, planar, atormentado e textural das obras. No meu entender conseguiu um profundo mergulho psicológico na obra de Sibelius e no seu espírito. Não há mais nada a dizer, a orquestra é perfeita (nem vale a pena andar aqui a dissertar sobre os trombones ou as cordas...) e mesmo o som tenso e brilhante (com uma afinação a 444 ou 445) da Filarmónica de Los Angeles não obliterou o lado obscuro e depressivo das obras. Simplesmente notável.

O único senão do concerto foram os pratos atrasados a correr atrás da orquestra no Finlândia e o exagero histriónico na Valsa Triste, não era preciso tanto "show off" depois destas leituras tão profundas da obra de Sibelius.

Uma composição de Steven Stucky, em estreia em Portugal, completou o programa. Devo dizer que me custa criticar aquilo que ouvi apenas uma vez. Gostei da construção da obra e das sonoridades e texturas, pareceu-me uma obra competente e bem construída, mas a meditação profunda nas sinfonias de Sibelius retirou-me a concentração para uma melhor apreciação desta obra.

A minha apreensão com a dificuldade do programa saiu totalmente injustificada, o público gostou muito da visão de Salonen e da sua interpretação tudo menos banal. Foi antes de tudo profundo e subtil e o público parece ter percebido.

Um concerto de elevadíssima qualidade, mesmo para quem não gosta de Sibelius e que deveria aproveitar para mergulhar um pouco no génio pouco extrovertido do finlandês...

A dar estrelitas daria sem complexos as cinco que nunca dou...

Nota- desta vez fiquei num camarote onde a acústica me pareceu excelente, algo que não é dispiciendo num local tão irregular em termos acústicos como o coliseu.

Citação: "In number four there was already this idea of turning space upside down. In number seven it has become a predominant feature: melody without gravity, but yet existing within the fields of planets with varying masses. I think that the finest thing in it is the surging of different tonal masses in a state of weightlessness. I sometimes debated with Hämeenniemi (the composer Eero Hämeenniemi) at what stage near the end of number seven one starts to become aware of the rising line of the strings below the theme played by the brass: one suddenly just realises that it has risen from the background and really gone wild! Soon we hear the bassoon playing in a high register and the flute in a low one – and there too you have this cancelling out of gravity."
Jukka-Pekka Saraste, 2002

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15.11.07

Ordem e Caos - Razão e Emoção 

Depois de um jejum penitencial de alguns dias volto ao blogue. Volto para escrever a propósito de concertos desta semana, sobre a Orquestra Sinfónica Portuguesa e a sua falta de rumo e de estratégia.

Tenho sido acusado, justa ou injustamente, de escrever com demasiada paixão e, às vezes, sem razão. Vou tentar ser desapaixonado sobre um assunto que não pode deixar indiferentes em termos de razão e de emoção os portugueses amantes de música.

Começo pela Sinfónica Portuguesa. Esta orquestra tem uma história recente, recebe fundos do Estado Português de onde retira quase exclusivamente o seu orçamento. Tem também uma história de desconsideração enorme por parte dos poderes públicos, sem condições para ensaiar, sem meios, sem maestro titular desde a saída de Soltan Péskó que deixou aliás uma memória de péssima qualidade artística. Depois de outros maestros titulares sem a menor marca ou valor a orquestra está neste momento entregue aos bichos, sem uma política efectiva de gestão artística, que se arrasta com a contratação deste novo director artístico do teatro nacional de S. Carlos que tem a tutela da orquestra sinfónica portuguesa, e que trabalha em part time em Lisboa. O desleixo relativamente à OSP é tão grande que nem sequer um concertino principal (1º violino solista e chefe de naipe dos violinos) tem neste momento.

Não existe qualquer razão emocional que ligue os portugueses a esta orquestra dirigida inicialmente por Álvaro Cassuto. É considerada nacional e internacionalmente, muito justamente, como uma orquestra fraca e pouco empenhada.

Esta orquestra custa ao erário público português muitos milhões de euros, creio que só em vencimentos e reforços atinge os 3 milhões, importância mínima para uma verdadeira orquestra sinfónica e um desperdício neste caso. Dedica-se a fazer algumas óperas, cada vez menos, que necessitam de recursos muito menores do que o seu efectivo, ficando muitos músicos em casa. Faz ainda alguns concertos muito esporadicamente e em número muitíssimo menor que qualquer orquestra sinfónica nacional. Não tem uma temporada de concertos coerente. A sua qualidade é muito baixa e isso nota-se quando os maestros são também eles de qualidade muito baixa, como neste ano com um rapaz alemão do qual não me recordo o nome e com um José Cura em que se atingiu o nível da indigência musical num concerto pretensamente de "gala" e que foi mais um concerto de miséria. Uma orquestra incapaz de tocar as notas da nona de Beethoven apesar da falta de direcção de José Cura não pode ostentar o nome de orquestra. Orquestra significa organização, significa concerto de personalidades e de valências musicais artísticas, e o que temos com a OSP é uma desorganização, uma desestruturação orgânica, é um agrupamento em fase de disrupção. Hoje a OSP é desagregação, é falta de motivação. O desrespeito por parte da tutela da cultura leva à desculpabilização dos músicos pela falta de qualidade artística do seu trabalho e a um desinteresse de muitos dos músicos pelo seu trabalho e pela música.

Esquecem-se no entanto que a música e o respeito pelo público e por si próprios estão acima da real desvalorização do papel da orquestra por parte dos poderes públicos que até são tutelados por professores catedráticos e não apenas por jovens turcos carreiristas oriundos das juventudes partidárias...

Qual a solução para este problema? Penso que a solução é simples. A OSP não tem qualquer património, não criou afectos ou empatias com o público. Os concertos no CCB estão às moscas, apesar de chuvas copiosas de convites, mesmo quando dirigidos por maestros de qualidade que por vezes disfarçam a real dimensão do problema com uma semana de ensaios mais ou menos atribulados. Quando aparece uma "estrela" lá se vai ao concerto e este enche, devido ao nome da estrela e, em muitos casos, para tirar os vestidos da naftalina, isto acontece sobretudo no velho teatro. O público lá vai aquentando a orquestra para ter o prazer de escutar uns dós de peito do tenor ou uns sobreagudos da diva, que nisto do gosto lusitano que quanto mais berrar o tenor ou mais guinchar a diva mais palmas e bravos levam, e têm de ser agudos, que baixos e contraltos não têm nunca o mesmo sucesso em Portugal do que os seus comparsas que andam no arame das notas perigosas...
Por outro lado a esquizofrenia de uma orquestra sinfónica sem sede, sem espaço, sem director, que não se sabe se é de ópera ou sinfónica, leva a uma permanente indefinição.
Recordo o exemplo da Metropolitana de Lisboa, que sob a direcção de Michael Zilm e de outros bons maestros e a uma política inteligente e apaixonada de Gabriela Canavilhas, apesar da tradicional barragem de críticas que muitos "melómanos" e outros maldicentes lusos lhe levantam, tem levado a um aumento de qualidade efectivo desta orquestra e a um aumento real de qualidade.
Mas nada se faz sem cortar, sem doer, a metropolitana tem despedido músicos, alguns até com capacidades, mas que provaram ao longo do tempo ser incapazes de manter um nível elevado sabe-se lá porque razões.

Extinção da OSP, a única solução

É neste contexto que penso que a solução seria acabar com a OSP. A extinção desta orquestra é a única solução que vejo no horizonte. O plano seria muito simples, criar uma orquestra de ópera, com cerca 40 músicos abaixo do efectivo da actual, que se especializasse em ópera e, em menor escal, bailado. A simples razão de se fazer Wagner com menos 19 cordas do que o previsto na partitura "porque não cabem no fosso" é razão mais do que suficiente para pensar numa orquestra muito mais económica. Nas grandes produções em que é necessário uma orquestra grande, a nova "Orquestra do S. Carlos" seria reforçada com músicos pagos específicamente para a tarefa. Poupar-se-ia ao erário público muitos milhões de euros em vencimentos, contribuições, reformas e segurança social.

Na contratação de músicos para esta orquestra seria dada prioridade aos músicos da actual OSP que mostrassem qualidade para tocar. Quem seria o júri destas contratações? Seriam músicos de elevadíssimo padrão internacional a presidir ao júri, exemplo Rattle, Abbado, Haitink, Gardiner. Não haveria a menor ingerência do poder político nesta questão, nem delegados do Secretário de Estado nem membros nomeados pela OPART, ou por nomeação do director artístico. Pedir-se-ia ao maestro de nomeada, presidente dos júris, que decidisse dos diferentes avaliadores para avaliar os instrumentistas. Cada painel teria que ser formado por músicos de nacionalidades diferentes (para evitar enviesamentos estilísticos, regionais ou outros), este maestro nomearia os especialistas dos diversos instrumentos para fazer as avaliações para cada naipe. Esta orquestra teria reavaliações obrigatórias a cada três anos.
Teria de ser nomeado um director artístico presente e permanente. Este esquema permitiria poupar dinheiro em vencimentos de forma a pagar um vencimento decente ao director para atrair gente de qualidade elevada e não um simples Peskó (que mesmo assim ganhava 4000 euros por mês mesmo quando não punha cá os pés), ou mesmo um Ranzetti ou, pior, um destes rapazes saídos do conservatório que têm aparecido sem qualquer noção do que é gerir o tremendo caldeirão de personalidades que é uma orquestra. Os vencimentos dos músicos da orquestra seriam mais elevados do que os actuais em cerca de vinte por cento. Mesmo triplicando o vencimento do titular e pagando mais vinte por cento aos músicos da nova orquestra poupar-se-ia uma soma de cerca de quinhentos mil euros por ano, o suficiente para pagar uma renda de uma sede e pagar todos os extras e mais alguns, com um aumento extraordinário de qualidade.
O problema é que mesmo pagando o triplo, hoje, creio que não há nenhum maestro de craveira internacional que aceite vir dirigir a Sinfónica Portuguesa. É evidente que a nova orquestra da ópera do S. Carlos teria de ter uma política claríssima de procura da qualidade, a partir da sua criação, o que já poderia ser estimulante para um maestro de elevado nível. Noto que ao vencimento do titular acrescem sempre os cachets dos concertos e óperas que dirige, já o foi assim no tempo de Peskó...

O coro do S. Carlos seria refundado a partir do nada, já que o que
"existe" é menos que nada, com um juri internacional para o qual convidaria (para presidir) Eberhard Friedrich, para mim o melhor maestro de coro de ópera do mundo.

Primeiros Violinos: actual 19, nova orquestra 12: -7
Segundos Violinos: actual 17, nova orquestra 10: -7
Violas: actual 15, nova orquestra 8: -7
Violoncelos: actual 11, nova orquestra 6: -5
Contrabaixos: actual 9, nova orquestra 4: -5

Flautas: actual 4, nova orquestra 3: -1
Oboés: actual 4, nova orquestra 3: -1
Clarinetes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Fagotes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Trompas: actual 6, nova orquestra 3: -1
Trompetes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Trombones: actual 4, nova orquestra 3: -1
Tuba: actual 1, nova orquestra seria extra: -1
Percussão: actual 4, nova orquestra 1 (só tímpanos): -3
Harpa: actual 1, nova orquestra seria extra: -1

Existem outros modelos, de forma ainda mais radical poder-se-iam reduzir as madeiras a pares ou, noutro sentido, poder-se-iam manter tuba e harpa. É evidente que aqui escrevo em abstracto, não tenho razões de queixa artísticas, quaisquer que sejam, dos instrumentistas em particular.

A esta nova orquestra seria dado o edifício da CNB como sede, que seria totalmente remodelado. O bailado seria transferido para outras instalações a construir de raiz na área envolvente do teatro Camões.

Portugal ficaria sem orquestra sinfónica nacional. Por enquanto sim. Quem questiona isto tem como resposta duas perguntas:
Será que Portugal tem uma Orquestra Sinfónica Nacional? Aquela que tem o nome de Orquestra Sinfónica Portuguesa é motivo para orgulho?
Dispenso-me de dar uma resposta.

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3.11.07

Este governo... 

Três exemplos bastam para definir a política inqualificável deste governo PS de José Sousa. Não se fala da personalidade do primeiro ministro, nem das suas menores habilitações, nem sequer de ideologia. O que se fala é de autoritarismo, incompetência e, pior, agendas escondidas, não se sabe bem a soldo de quem e com que interesses, às custas dos cidadãos de Portugal (que se pressentem nas afirmações de Mário Lino que desvaloriza o estudo sério sobre o aeroporto em Alcochete). Nem falo de cultura, o mais miserável dos ministérios, onde os dirigentes são recrutados entre o pior da escória de governantes e políticos deste aparelho e onde todas as decisões, menos uma (nomear Wellemkamp), têm sido entre catastróficas, destrutivas, pacóvias ou irrelevantes.
A marca na cultura é nomeação continuada de personalidades de vulto com sentido crítico e espírito de iniciativa, e não lambe-botas acéfalos, para os mais variados lugares, e destaco dentre os nomeados pela bola de cristal de "Hermenêutica & Pires", essa bela dupla, o Henriques do museu de Arte Antiga, uma luminária do saber ocidental e capaz de juízos de valor independentes e profundos. Mas como já falei demasiado de cultura passo aos tais exemplos:

1. Carlos Araújo Alves dá notícias de uma conferência sobre ensino artístico organizada pelo governo onde não foram convidados artistas ou pedagogos ligados às artes! Apenas os serventuários e apaniguados do costume, ou serão as tais luminárias com sentido crítico e pensamento independente? Será que o Henriques do MNAA lá foi?
Os organizadores foram Cultura, Educação e Estrangeiros.

2. Manuel Cintra Torres disserta sobre o novo contrato de concessão do serviço público, não há link que valha, por isso transcrevo parte do texto de Torres. Não comento, o texto fala por si:
a No contrato de concessão do serviço público de TV agora em consulta pública o monstro governamental terá quase uma dúzia de canais. Estaline e Jdanov, nas suas campas, e Caracas, Harare e Pyongyang roem-se de inveja ao lerem este caderno de encargos televisivo do Governo Sócrates.
Ele prevê a possibilidade de canais adicionais, um infanto-juvenil e outro de conhecimento. Para quê? Manuel Falcão, ex-director da 2:, comentou que essas programações já são hoje obrigação da RTP, pelo que a proposta do ministro Santos Silva visa consagrar que a RTP1 e a RTP2 tenham "cada vez menos conteúdos de serviço público". O Governo pretende da RTP serviços mais comerciais e com mais audiência para as mensagens do Governo na RTP1 e 2.
O documento só obriga a RTP1 a passar um documentário e uma grande reportagem por mês. Mas não impõe limites a noticiários obscurantistas e programas comerciais sem valor acrescentado de serviço público; permite que publicidade e televendas ocupem espaços diários muitíssimos superiores aos que o canal terá de dedicar a documentários, reportagens e outras áreas em que os privados têm menos ou nenhumas obrigações.
O documento, como outros antes, tem um truque: diz o que a RTP deve dar, mas não diz o que ela não deve dar, abrindo portas à programação comercial e até à propaganda (informação "devidamente contextualizada"). Tal como a ERC, o Governo propõe uma avaliação quantitativa do cumprimento do contrato, isto é, basta um programa apresentar-se como de um género para "ser" desse género, mesmo que o conteúdo não seja de serviço público.
O documento arrasa a relação da concessionária com a programação da sociedade civil, que foi uma das maiores conquistas da TV pública desde o 25 de Abril. Por um lado, mantém a fachada da relação da RTP2 com as organizações não-governamentais (ONG), hoje muitas dezenas com acordos assinados com a RTP. Depois de 2003 houve dois debates diários na 2: (Causas Comuns e Tudo em Família), mas a direcção da RTP2 nomeada em tempos deste Governo reduziu-os a um (Sociedade Civil). E agora? Hipocritamente, o novo contrato promete "espaços regulares de debate" que assumam "a pluralidade e a representatividade das organizações" da sociedade civil (nº 11.f), mas o contrato proposto por Santos Silva dá a machadada final à participação da sociedade civil no serviço público ao estabelecer uma periodicidade quinzenal para esses espaços de debate (nº14.b). Quinzenal! São quase cem as ONG que nele participam por acordo assinado com a RTP - de quantos em quantos anos participarão neste espaço quinzenal? O Governo alinha com a via da actual direcção da RTP2, que a vai transformando num generalista tipo de RTP1 com controlo das vozes vindas de fora do Governo e do sistema.
O Governo Sócrates tem tiques autoritários e controleiros, odeia manifestações, tem nojo do jornalismo independente, faz uso sistemático da propaganda e, como se vê no novo contrato de concessão, detesta o debate e a sociedade civil. Nunca esperei que este Governo do PS viesse a ser tão reaccionário.


O outro exemplo vem das Obras Públicas, o mais boçal dos ministros deste governo, o tal Lino que é engenheiro da Ordem e do Técnico, e que arrota uns bitaites sobre o "deserto" da margem sul depois de uma almoçarada, vem dizer que ainda não leu o estudo sobre Alcochete, que não tem tido tempo e que recebe muitos estudos por dia no ministério. Cito as frases de Lino, dignas da antologia da bestialiada e da alarvidade política, acho que ele faria muito melhor a si, ao governo, ao José Sousa e ao país, em vez de arrotar postas de pescada, se dedicasse apenas a arrotar literalmente depois (e antes) das tais almoçaradas, que tem imenso tempo para praticar, ficava-lhe melhor e era menos afrontoso para a inteligência dos que lhe pagam o ordenado de ministro, já que a sua...
O ministro das Obras Públicas, Mário Lino, disse que ainda não leu o estudo da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) que aponta Alcochete como melhor localização para o novo aeroporto de Lisboa, mas afirmou que lhe dará "uma vista de olhos". A fonte é o "O Público":

"Ainda não tive tempo de ler o estudo", afirmou Mário Lino, acrescentando que "certamente" lhe dará "uma vista de olhos". "O ministério recebe todos os dias muitos estudos (...) e não tenho tempo para estar a ler"...

Brilhante, Sic Transit Gloria Mundi.

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